Desafios ambientais na implementação das linhas de transporte de energia elétrica: reservas legais e a gestão do CAR

 

Autores: Raphael Rodrigues e Murillo Meirelles

Revisor: Ricardo Velloso

 

Um dos grandes desafios das concessionárias de fornecimento e distribuição de energia elétrica está na instituição de servidão administrativa[1] de rede de energia elétrica em área de reserva legal necessitando solicitar, perante os órgãos competentes as competentes licenças ambientais e autorizações para supressão de vegetação nativa. Esse aspecto é particularmente relevante, pois sem a respectiva licença, não há a expedição do alvará de construção o que acarreta demora na sua execução e, consequentemente, afeta diretamente a população atendida, ofendendo o conceito da necessidade pública e urgência que, muitas vezes, revestem essas obras.

Para melhor compreensão deve-se analisar, em especial, o teor do artigo 12, incisos I e II da Lei 12.651/12, que estabeleceu um percentual mínimo de vegetação nativa denominada Reserva Legal, em relação à área do imóvel, determinando que o posseiro/proprietário, de acordo com a localidade e área do seu imóvel, deverá destinar parte da vegetação nativa ao percentual mínimo exigido por Lei (Amazônia Legal: 80% em área de florestas, 35% em área de cerrado, 20% em área de campos gerais e 20% em áreas nas demais regiões do país não pertencentes a Amazônia Legal).

Elucidado os percentuais mínimos de vegetação nativa em cada imóvel, o posseiro/proprietário afetado por instituição de servidão administrativa, nos termos do art. 40 do Decreto Lei 3.365/41, em área de reserva legal, terá que proceder a realocação do percentual afetado para que sua área não fique com déficit e com isso sofrer as sanções dos órgãos reguladores? A resposta para tal questionamento: é sim, pois o ônus real recai sobre a coisa, tratando-se de uma obrigação propter rem, conforme tratamento do § 2º, do art. 2º da Lei 12.651/12 e Súmula 623 do STJ[2].

Neste sentido explica Paulo Bessa de Antunes: “a reserva legal é uma obrigação que recai diretamente sobre o proprietário do imóvel, independentemente de sua pessoa ou da forma pela qual tenha adquirida a propriedade, desta forma, ela está umbilicalmente ligada à própria coisa, permanecendo aderida ao bem.”.[3]

Ocorre que o Código Florestal não regula os casos de intervenção do Estado Federativo e/ou de seus delegados sobre a propriedade privada nos casos de servidão administrativa, limitando-se tão e somente nos casos de desapropriação, onde há transferência do bem privado ao órgão público e desta forma não lhe será exigido o percentual de reserva legal. O Código Florestal divide a responsabilidade comum da União, com os Estados e Municípios quanto as políticas de preservação e restauração da vegetação nativa, conforme art. 1º, inciso IV da Lei 12.651/12.

Cada Estado-membro tem a sua legislação específica quanto a realocação da reserva legal e seus procedimentos complementares para que seja procedido a sua realocação, alteração nos Cadastros Ambientais Rurais – CAR.

A título exemplificativo, destaca-se a legislação do Estado da Bahia (Lei Ordinária 10.431/16), que em seu art. 108 regula a realocação da reserva legal, tornando-a possível de forma excepcional mediante acordo formal celebrado entre o Poder Público e o ente privado, desde que avaliado e aprovado pelo INEMA e certificado pelo SEIA, pois para realização do procedimento realocação é importante manter o tipo de bioma.

Em relação ao Cadastro Ambiental Rural – CAR, cadastro ambiental de imóveis rurais, obrigatório por todos seus respectivos posseiros/proprietários, nos termos do art. 29 da Lei 12.651/12, encontra-se 3 (três) circunstâncias para realocação da reserva legal:

– Área cadastrada não certificada – realocação da reserva legal por meio eletrônico através do portal SEIA, de forma quase instantânea com as adequações do shapes da reserva legal junto ao portal, após análise do órgão ambiental regulador INEMA será emitida a certificação.

– Área cadastrada e certificada – realocação da reserva legal por meio de processo administrativo, documentação e shapes da área da reserva legal antes da realocação e como será após a realocação junto ao órgão ambiental regulador INEMA, após a sua aprovação proceder com alteração da área cadastrada junto ao portal SEIA e imissão da certificação.

– Área cadastrada, certificada e averbada – mesmo procedimento do caso acima, com o acréscimo de proceder com a averbação da realocação da reserva legal na matrícula do imóvel. Há desobrigação do cumprimento do inciso III do § 1º do artigo 29, com fundamento no art. 30, § único ambos da Lei 12.651/12.

Com isso, somente após adotar todos os procedimentos administrativos junto ao órgão ambiental INEMA e devidamente cadastrado e certificado no portal SEIA, pode-se solicitar a autorização de supressão de vegetação da área onde será instituída a servidão administrativa. Trata-se de procedimento complexo, moroso e, somando a isto, a própria onerosidade decorrente da diligência de engenheiro agrimensor, perícia e certificação.

Muitas vezes, o dever de realizar inclusão e gestão do CAR é equivocadamente imposto às concessionárias distribuidoras de energia elétrica, tornando ainda mais dificultoso todo esse procedimento, uma vez que compete exclusivamente ao proprietário/possuidor tais atos conforme art. 29, §1º, da Lei 12.651/2012[4]. Tal questão foi devidamente esclarecida na conclusão do Parecer nº 38/2016 AJU-SFB/CONJUR-MMA/CGU/AGU[5]:

Diante das dificuldades apontadas, pode-se suscitar o seguinte questionamento: se nos atos de desapropriação ou aquisição de imóvel pelo Poder Público ou por seus delegados, não há a exigência da Reserva Legal nos percentuais exigidos por lei conforme art. 12, §7º[6], qual é a razão de se exigir a realocação da reserva legal na instituição da servidão administrativa?

Apesar de se levar em conta regras hermenêuticas como a interpretação restritiva de normas restritivas e “in dubio pro ambiente”, torna-se prudente sopesar a importância do direito social fundamental do acesso à energia elétrica e o menor impacto ambiental decorrente das servidões administrativas para implantação das redes de energia em comparação com as grandes desapropriações para fins de implantações de obras de grande porte como usinas geradoras de energia elétrica.

Em certa medida, ao julgar a ADI Nº 4.901 e ADC Nº 42, o próprio Supremo Tribunal Federal entendeu pela constitucionalidade da dispensa legal em razão do bem jurídico que se visa garantir[7].

Ainda sob o ponto de vista da utilidade da norma legal, não se espera que a lei geral (Código Florestal) determine todo e qualquer tipo de peculiaridade, cabendo ao legislador ordinário ou ao poder regulamentador especificar circunstâncias que se amoldem ao comando legal. Nesse sentido a Resolução ANEEL 919 de 23 de fevereiro de 2021, põe em pé de igualdade os procedimentos de Declaração de Utilidade Pública para as desapropriações e para a instituição de servidões de áreas necessárias à geração e transporte de energia elétrica, que coexistem de forma simbiótica, uma não funcionando sem a outra.

Não haveria razão para que a lei geral (artigo 12, § 7º do Código Florestal) afastasse a obrigatoriedade da instituição de reserva legal apenas às áreas que fossem alvo de desapropriações (normalmente atribuída às áreas destinadas às atividades de geração e construção de subestações para as atividades de distribuição) tornando exigível para as áreas que são objeto de instituição de servidões, essas normalmente consideradas para a implantação das linhas de distribuição e de transmissão de energia.

A utilização desses institutos (desapropriação e servidão) não é aleatória. Nenhum sentido faria desapropriar faixas quilométricas lineares dentro de uma ou várias propriedades, rasgando-as ao meio e criando outras novas propriedades, quando o uso dessas faixas seria apenas alvo de restrições para algumas atividades, podendo outras serem desenvolvidas ao longo das terras atingidas pelas linhas de transmissão. Mais ainda: a desapropriação das áreas para a implantação de longos trechos de linhas de transmissão tornaria o processo inviável economicamente, em função da necessidade de indenizações dos proprietários, custo esse que seria transportado para as tarifas e, consequentemente, para o consumidor-cidadão, o que também afeta o princípio da modicidade tarifária.

Quando a lei determina a desnecessidade de instituição de reserva legal para as áreas “nas quais funcionem empreendimentos de geração de energia elétrica, subestações ou sejam instaladas linhas de transmissão e de distribuição de energia”, assim o fez por considerar todas essas atividades como necessárias ao Sistema, não fazendo sentido viabilizar a geração sem que se viabilize a transmissão e distribuição. A norma geral ao tratar de “aquisição” e “desapropriação”, assim o fez como conceito geral, não afastando as peculiaridades que informam o setor e que, por certo, se harmonizam com a legislação em vigor.

 

Sob qualquer ótica, a temática é extremamente sensível por envolver a confrontação da proteção ao meio ambiente com as obras necessárias para implantação das linhas distribuição de energia elétrica, essenciais como disposto no art. 3º, §1º, X, “a” e “b”, do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020[8], para entregar a energia aos consumidores. Assim, torna-se imperioso, sempre que possível, compatibilizar os valores jurídicos em testilha, dando guarida ao meio ambiente e garantindo o acesso à energia elétrica.

 

Referências Bibliográficas:

ANTUNES, Paulo Bessa de. Poder Judiciário e reserva legal: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Ambiental. vol. 21. p. 120. São Paulo: Ed. RT, 2001.

 

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12651 de 25 de maio de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9074cons.htm. Acesso em: 10 abril de 2021.

BRASIL. Presidência da República.  Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282compilado.htm. Acesso em: 10 de abril de 2021.

Bahia. Assembleia Legislativa da Bahia. Lei nº 10.431 de 20 de dezembro de 2006. Disponível em: https://aiba.org.br/wp-content/uploads/2014/10/LEI-10431-2006.pdf. Acesso em: 12 de abril de 2021.

EMBRAPA. Entenda a Lei 12.651/12. Cadastro Ambiental Rural. Disponível em: https://www.embrapa.br/codigo-florestal/entenda-o-codigo-florestal. Acesso em 01 de abril de 2021.

INEMA/BA. Portaria nº 22.078/21. Dispõe sobre a aprovação da localização da Reserva Legal no Estado da Bahia. Disponível em: http://www.inema.ba.gov.br/wp-content/files/Portaria_INEMA_22.078_de_2021.pdfhttp://www.inema.ba.gov.br/wp-content/files/Portaria_INEMA_22.078_de_2021.pdf. Acesso em 01 de Abr. de 2021.

 

MILARÉ, Édis. Direito do Meio Ambiente. 8ª ed. – São Paulo – Ed. Revista dos Tribunais – 2013.

SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. – 6 ed.rev.,atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

STJ. Recurso Especial nº 122.812/ES– Min. Rel. Milton Luiz Pereira, Primeira Turma, julgado em 05/12/2000, DJ 26/03/2001, p. 369). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=199700168980. Acesso em 01 de Abr. de 2021.

STF. Ação direta de Inconstitucionalidade 4.901-DF. Min. Rel. Luiz Fux. Plenário, data de publicação 13/08/2018. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340792363&ext=.pdf. Acesso em 12 de abril de 2021.

 

[1] Servidão administrativa é o direito real de uso, estabelecido em favor da Administração ou de seus delegados e incidente sobre propriedade particular para realização de obras e serviços de utilidade pública. (SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. – 6 ed.rev.,atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. Pág. 667)

[2] As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.

[3] Poder Judiciário e reserva legal: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Ambiental. vol. 21. p. 120. São Paulo: Ed. RT, 2001.

[4] A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser feita, preferencialmente, no órgão ambiental municipal ou estadual, que, nos termos do regulamento, exigirá do proprietário ou possuidor rural: (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012)

[5](…) Ante todo o exposto, o resultado da análise dos elementos trazidos pela TAESA e pelo FMASE, em consonância com os argumentos esposados no Parecer nº 136/2015 e observadas as considerações complementares aqui manifestadas, leva concluir que a responsabilidade pela inscrição no CAR recai sobre o proprietário do imóvel rural onde se situa a servidão administrativa de passagem, instituída para instalação dos empreendimentos de geração, transmissão e distribuição de energia, na forma de subestação, linhas de transmissão, usinas eólicas ou termelétricas, dentre outras.

[6] §7º Não será exigido Reserva Legal relativa às áreas adquiridas ou desapropriadas por detentor de concessão, permissão ou autorização para exploração de potencial de energia hidráulica, nas quais funcionem empreendimentos de geração de energia elétrica, subestações ou sejam instaladas linhas de transmissão e de distribuição de energia elétrica. (Vide ADC Nº 42) (Vide ADIN Nº 4.901)

[7](…) (m) Art. 12, §§ 6º, 7º e 8º (Dispensa de reserva legal para exploração de potencial de energia hidráulica e construção ou ampliação de rodovias e ferrovias): Na hipótese, a dispensa de reserva legal resulta de opção do legislador amparada pelos benefícios gerados quanto à satisfação dos objetivos constitucionais de prestação de serviços de energia elétrica e de aproveitamento energético dos cursos de água (art. 21, XII, ‘b’, da CRFB), de exploração dos potenciais de energia hidráulica (art. 176 da CRFB), de atendimento do direito ao transporte (art. 6º da CRFB) e de integração das regiões do país (art. 43, § 1º, I). Ademais, o novo Código Florestal não afastou a exigência de licenciamento ambiental, com estudo prévio de impacto, para “instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente” (art. 225, § 1º, IV, da Constituição); CONCLUSÃO: Declaração da constitucionalidade do artigo 12, §§ 6º, 7º e 8º, do novo Código Florestal;

[8]Art. 3º (…) § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: (…) X – geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, incluídos: (Redação dada pelo Decreto nº 10.329, de 2020) a) o fornecimento de suprimentos para o funcionamento e a manutenção das centrais geradoras e dos sistemas de transmissão e distribuição de energia; e (Incluído pelo Decreto nº 10.329, de 2020) b) as respectivas obras de engenharia;  (Incluído pelo Decreto nº 10.329, de 2020)