A AÇÃO DE USUCAPIÃO E A POSSIBILIDADE DO PRAZO PRESCRICIONAL AQUISITIVO NO CURSO DA DEMANDA
Autora: Fernanda C. Barroso de Souza
A Usucapião, também chamada de prescrição aquisitiva, é uma modalidade de aquisição originária de um direito real: a propriedade, que é reconhecida em atenção à posse mansa, pacífica e prolongada por certo intervalo de tempo. Ou seja, trata-se de instituto que permite a estabilização da propriedade por meio da transformação de uma situação fática em jurídica, consolidando-se o título em favor do possuidor (usucapiente).
O objetivo da usucapião é afastar a incerteza do possuidor, evitando conflitos no exercício de seus direitos, dando aplicabilidade aos princípios constitucionais da função social da propriedade e sua utilidade social.
De início, deve-se esclarecer que não apenas a propriedade e o domínio útil são passíveis da usucapião, mas também o usufruto, o uso, a habitação, as servidões aparentes e até mesmo os bens semoventes.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald entendem que a aquisição da propriedade pela usucapião deve preencher os requisitos: pessoais (aqueles relacionados ao possuidor e ao proprietário), reais (aqueles referentes ao bem a ser objeto de usucapião) e, por fim, os requisitos formais (que são aqueles que compreendem os elementos do instituto em si, como, por exemplo, “animus domini”, a posse unida ao tempo, posse justa, justo título e boa-fé).[1]
Não há dúvida, no entanto, que o principal requisito a ser analisado no reconhecimento da prescrição aquisitiva é o lapso temporal, que, em verdade, é uma das características da posse, ou seja, um dos requisitos formais do instituto.
A posse “ad usucapionem” deve ter a intenção de dono, exercida de forma mansa e pacífica, sem a oposição do proprietário do bem, mas sobretudo, a posse deve ser contínua e duradoura.
Quanto a duração, há prazos diferenciados estabelecidos em lei, a depender de cada modalidade de usucapião, podendo variar entre 2 (dois) e 15 (quinze) anos. Em regra, o lapso temporal deve ser atingido sem interrupção. Não obstante, o art. 1.243 do Código Civil admite a soma de posses sucessivas (accessio possessionis), podendo o possuidor acrescentar à sua posse o período de seus antecessores, desde que sejam também contínuas e pacíficas. Importante asseverar, no entanto, que referido instituto não se aplica aos casos de usucapião especial urbana e rural, em atenção ao tratamento específico que consta da Constituição Federal, havendo regra especial quanto à modalidade urbana prevista no Estatuto da Cidade.
Vale ressaltar ainda, que os vícios da posse também se transmitem, portanto, a posse anterior, se for violenta, clandestina ou precária, contaminará a posse do possuidor derivado, no caso de accessio possessionis.
Pois bem! O tempo, ou melhor, o lapso temporal de exercício efetivo da posse é, então, um requisito formal a ser observado de acordo com a espécie de usucapião a ser pleiteada, atentando-se ao prazo legalmente determinado, que leva em consideração questões como boa-fé, o justo título e a natureza social da posse para fixação do período necessário ao reconhecimento da pretensão aquisitiva.
O ponto é: o implemento do pressuposto temporal, deve ocorrer na data de ajuizamento da ação? Ou é possível que o lapso temporal exigido pela lei seja alcançado durante o curso processual?
Parece-nos correto afirmar que, sem que haja o transcurso de todo o prazo exigido pela normal legal, a ação não pode ser proposta, sob pena de improcedência, já que ausente o atendimento de um requisito necessário ao reconhecimento do direito perseguido.
Não obstante, na V Jornada de Direito Civil realizada no ano de 2011 foi aprovado enunciado estabelecendo que: “O prazo na ação de usucapião pode ser completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor”. (Enunciado 497 do CJF/SJT)
Referido enunciado, orienta que, caso o possuidor de boa-fé entre com ação antes do período necessário para que seja possível usucapir o bem, este não será prejudicado pelo erro, se no curso processual, o prazo exigido pela lei se exaurir.
No julgamento do Resp 1.720.288/RS, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou, por unanimidade, o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e decidiu ser possível o reconhecimento da prescrição aquisitiva quando o prazo exigido pela lei se completa no curso da ação de usucapião. O entendimento teve como fundamento o Art. 462 do Código de Processo Civil de 1973, o qual encontra correspondência no dispositivo 493 do novo ordenamento, preceituando que, se após a propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influenciar no julgamento do processo, o juiz deverá levá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.
Nessas hipóteses, o juiz deve decidir tendo como base o estado em que o processo se encontra naquele momento, reconhecendo, se o caso, fato constitutivo que se implementou após o ajuizamento da demanda, na forma do dispositivo acima mencionado.
Noticiado julgamento segue entendimento do precedente da 4ª Turma, (Resp n. 1088082/RJ), de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, no qual, também foi reconhecida a possibilidade de declaração da usucapião ocorrida durante o trâmite do processo.
Mas como fica, neste cenário, a oposição do proprietário à posse do Usucapiente? A Ministra Nancy Andrighi, relatora do Resp. 1.720.288/RS, asseverou que a contestação oferecida na ação de usucapião não tem o condão de interromper o prazo da prescrição aquisitiva, sendo incontroverso que a resistência oposta nesta oportunidade se limita ao protesto de sua discordância com a procedência do pedido.
Em seu voto, a Ministra Relatora trouxe ainda os ensinamentos de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, quanto a possível interrupção da prescrição aquisitiva pela citação na demanda usucapienda: “Não se esqueça, por sinal, que a citação feita ao proprietário na ação de usucapião não se insere dentre as causas interruptivas da usucapião. Ora, o art. 202, inciso I, do Código Civil foi instituído em proveito daquele a quem o prazo da usucapião prejudicaria apenas nas ações por ele ajuizadas, mas não naquelas contra ele promovidas. Daí a necessidade de se outorgar eficácia jurídica ao fato superveniente, pois a lide mudou de configuração no seu curso”. [2]
Diante disto, a tutela da propriedade se dará pelo ajuizamento de ação reivindicatória, remédio processual específico para a defesa do domínio à disposição do proprietário para reaver a coisa de quem injustamente a possua. Isto porque, se a ação proposta pelo proprietário visa, de algum modo, a defesa do direito material, a citação dos réus interrompe o prazo para a aquisição do imóvel por usucapião, ainda que referida demanda encontre-se ajuizada.
Cabe salientar, neste contexto, a previsão contida no Art. 557 do Código de Processo Civil, no seguinte sentido: ”Na pendência de ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa”.
Ocorre que, em verdade o ajuizamento de ação de usucapião não impede o aforamento de ação reivindicatória, uma vez que embora busquem direitos relativos ao mesmo objeto, a ação de usucapião é instrumento hábil para aquisição originária da propriedade em decorrência da posse prolongada, enquanto na demanda reivindicatória o titular do bem busca reaver sua posse de quem injustamente a possua.
Neste contexto, apesar da previsão legal bastante clara, entendemos que sua aplicação literal impediria o proprietário de ajuizar ação para defesa de seu domínio, e, por conseguinte, violaria seu direito constitucional de ação. Ademais, em atenção ao atual entendimento do STJ no sentido de possibilitar a implementação do prazo prescricional aquisitivo no curso do processo usucapiendo, a vedação à ação representaria respaldo legal a quem, ardilosamente, ajuíze ação possessória prematuramente, apenas para impedir a recuperação do bem por seu legítimo titular, em tempo hábil a reavê-lo.
Diante do exposto, tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm afastando a interpretação literal do Art. 557 do CPC, restringindo sua aplicação aos casos em que o processo possessório tenha como fundamento simplesmente o domínio.
Conclui-se, portanto, pela existência de duas hipóteses distintas. A primeira, a ação possessória fundada em domínio, na qual haverá a aplicação literal do artigo 557 do CPC, inadmitindo-se ao réu propor ação reivindicatória, sob pena de restar configurada a litispendência, vez que já se dará em seu bojo a discussão sobre a titularidade do bem para determinação da legitima posse.
A segunda hipótese, trata-se da ação possessória sem fundamentação no domínio, onde será possível ao réu propor ação reivindicatória, com vistas a proteger seu patrimônio.
Evidentemente, a ausência de aplicação de referida interpretação restritiva ao Art. 557 do CPC, não apenas daria margem a ações de usucapião prematuramente pelo possuidor, com o intuito ilegítimo de impedir a recuperação da coisa por seu titular dominial, como também representaria verdadeira afronta ao direito de ação e ao próprio direito de propriedade, à medida que impediria a oposição tempestiva a posse indevidamente constituída.
[1] Curso de Direito Civil: Reais (16ª ed). Ed. Juspodivm 2020.
[2] Curso de Direito Civil: Reais (5ª ed). Ed. Lumen Juris, 2008.